Há muito tempo, num bairro antigo de Lisboa, vivia um homem chamado Joaquim Almeida. Desde que a esposa partira, a solidão envolvia-o como um manto pesado. Tudo lhe parecia cinzento. Nada mais lhe trazia alegria nem os dias de sol, nem uma chávena de café forte pela manhã, nem os filmes antigos que outrora alegravam a família. O trabalho era a sua única âncora. Enquanto tivesse forças, lá ia, pois em casa só havia um silęncio insuportável, que lhe ecoava nos ouvidos e lhe trespassava o coração.
Os dias passavam, todos iguais, como cópias uns dos outros: manhã, autocarro, trabalho, casa, sombras nas paredes, noites vazias. O filho e a filha visitavam-no cada vez menos, quase desaparecidos da sua vida. As chamadas eram breves, por cortesia. Depois, deixaram de atender. Joaquim vagueava horas pelas ruas de Alfama, observando os rostos dos transeuntes, na esperança de encontrar algo familiar. A velhice não o assustava morrer sozinho, sim.
Sentia-se apagado por dentro. A alma doía-lhe, contraía-se. Lembrava-se da mulher queria pedir-lhe perdão, mas nunca ousava marcar o número. Amava-a ainda. Arrependia-se de não ter dito tantas coisas.
Até que, um dia, a filha, Mariana, apareceu à sua porta. Alegrou-se como uma criança. Preparou-lhe os pastéis de nata que ela adorava, serviu café, trouxe os álbuns de fotografias antigas queria reviver os tempos bons. Mas a visita não era para isso.
Pai disse ela, com voz gelada , vives sozinho num T4. Não é justo. Vende-o. Podes comprar um T1 para ti e dar-me o resto do dinheiro.
Joaquim não acreditou no que ouviu. Pensou que fosse brincadeira, que iria rir. Mas não havia ironia no seu olhar.
Eu não vendo nada. Esta é a minha casa o vosso quarto de criança está aqui, foi aqui que vivi com a tua mãe
Já viveste o suficiente! atirou ela, friamente. Preciso mais desse dinheiro do que tu! Estás sozinho, para que tanto espaço?
Quando voltas? perguntou ele, com voz sumida, quase irreconhecível.
Ela olhou-o com indiferença e, calçando os sapatos, respondeu:
No teu funeral.
A porta bateu. Joaquim ficou paralisado. Depois, desabou no chão. Uma dor no peito martelava-o. Ficou ali tręs dias. Sem comer, sem forças, sem esperança. Ligou então ao filho.
Rui, vem não me sinto bem suplicou.
O filho ouviu. Seguiu-se um silęncio. Depois, disse:
Pai, não leves a mal, mas esse apartamento grande realmente não te faz falta. Quero comprar um carro, podias ajudar-me Eu iria se decidisses vender a casa.
Um silęncio profundo pairou. Aquele que ressoa nos ouvidos e deixa a alma vazia. Joaquim desligou. Entendeu que já não tinha filhos. Apenas estranhos com o seu sangue.
No dia seguinte, entrou numa farmácia. Encontrou, por acaso, o irmão da ex-mulher. O homem, surpreso, cumprimentou-o.
A Ana? perguntou Joaquim. Como está ela?
Foi para Itália respondeu o homem, lacónico. Casou-se com um italiano. Encontrou a felicidade.
„Encontrou a felicidade” As palavras queimavam. Joaquim não era contra a felicidade dela. Era contra o seu próprio vazio.
Na manhã seguinte, acordou com um peso no peito. Lá fora, o céu estava baixo e escuro. Vestiu o casaco, saiu. Caminhou por algumas ruas. Encontrou um banco velho num jardim. Sentou-se. Fechou os olhos. O coração deu a sua última batida dolorosa.
A sua alma, cansada de dor, indiferença e silęncio, elevou-se enfim para um lugar onde ninguém trai. Onde ninguém pede o último tostão. Onde, talvez, alguém lhe dissesse outra vez: „Pai, senti a tua falta”
Mas isso já não era aqui.