« O Despertar Tardio de uma Sogra »
« Quando já não restava ninguém, a minha sogra lembrou-se de nós. Mas tarde demais… »
Já lá vão mais de dez anos com o Luís. Casei-me aos vinte e cinco. Ele não é filho único: tem dois irmãos mais velhos, ambos bem estabelecidos carreiras, casas, famílias. O retrato perfeito, como se diz. A mãe dele, Olívia Mendes, é uma mulher de carácter forte, do tipo que não se esconde atrás dos outros. Criou sozinha os tręs filhos sem nunca baixar a cabeça.
Desde o nosso noivado, senti nela uma aversão especial por mim. Nada direto, mas tudo se via nos silęncios à mesa, nos olhares de soslaio, nos « esquecimentos » calculados. Eu fingia indiferença. Talvez não correspondesse às expectativas dela? Ou talvez se recusasse a largar o caçula?
Porque o Luís era o seu pilar. Depois da partida dos mais velhos, ele ficou para a ajudar: compras, consultas, papeladas. Depois, eu apareci. E a vida dela virou de pernas para o ar.
Tentei de tudo para conquistá-la. Pratos cozinhados com carinho, convites para festas, presentes escolhidos a dedo. Até tentava chamar-lhe « mãe », mas a palavra ficava presa na garganta. Ela mantinha uma frieza distante, e eu sentia-me uma intrusa naquela família.
Quando o nosso filho, João, nasceu, Olívia mostrou-se mais presente. Breve alívio: assim que os outros netos chegaram, o nosso tornou-se invisível. Ela passava o Natal lá, ligava-lhes toda a semana, e nós éramos relegados para segundo plano. O pior? « Esquecia » o meu aniversário, sistematicamente, a não ser que o Luís lhe lembrasse. Nunca uma mensagem, nem um postal. Sofri, mas acabei por aceitar: nem todas tęm a sorte de ter duas mães.
Os anos voaram. Uma vida modesta, mas digna. A nossa filha, Beatriz, nasceu. O Luís trabalhou, eu cuidei das crianças. A minha sogra flutuava à margem da nossa existęncia a mesma distância, as mesmas visitas raras. Não forçávamos nada.
No ano passado, o marido dela faleceu. O golpe partiu-a. Médicos, antidepressivos, diagnóstico de « depressão senil ». Os filhos mais velhos apareceram uma vez, deixaram umas compras… e depois, nada. Nós íamos ao apartamento dela em Lisboa não sempre, mas mais do que eles.
E então, em meados de dezembro, ela convidou-nos para a ceia de Natal. « Preciso de vocęs », murmurou. Aceitei, apesar de tudo. Não se abandona alguém vulnerável.
Eu preparava o bacalhau, arrumava a mesa, enquanto ela suspirava no sofá. « O Pedro e o Miguel vęm? », perguntei. Ela encolheu os ombros: « Para quę? »
A meia-noite aproximava-se. De repente, ela endireitou-se: « Sentem-se. Tenho uma proposta. » A voz tremia-lhe. « Pedi às minhas outras noras que me acolhessem. Recusaram. Então… mudem-se para cá. Em troca, deixo-vos o apartamento. »
Um choque. Todos aqueles anos de indiferença… E agora, porque os outros a abandonaram, volta-se para mim? Como se um T3 em Lisboa apagasse vinte anos de frieza?
O Luís prometeu pensar. No carro, desfiz-me em lágrimas. Sem gritos, mas com a voz embargada:
« Olha, não sou santa. Não vou viver com quem me tratou como fantasma. Que nunca foi a uma peça da escola dos netos. Esta « afeição » repentina… Ela só tem medo de morrer sozinha. Mas porque é que temos de pagar com a nossa vida o que ela nos negou? »
« É a minha mãe… », murmurou ele.
« Uma mãe consola. Não escolhe entre os filhos. Ela excluiu-nos da história dela. Que se vire agora para os preferidos. »
Ele calou-se. Sabia da sua dor. Mas entendeu-me.
Não voltámos à Rua Augusta. Algumas chamadas gélidas. Ela queixa-se da desilusão. E eu penso: que direito tem de esperar? Que um sorriso se compre com metros quadrados?
Não. A dignidade não tem preço. Se não contas nos dias claros, não serves de escudo contra as sombras.
Não é vingança. Apenas a dura lição de escolher quem nos escolhe.